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quinta-feira, março 28, 2024

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Memórias da Redação – A rainha, Pelé, Havelange e o coro no Maracanã

Antonio Epifânio Moura Reis ([email protected]) volta a colaborar com este espaço instigado, segundo o próprio, por manchetes recentes da imprensa. Piauiense, atuou em Belo Horizonte (Diário de Minas, Diário da Tarde e Correio de Minas), Rio de Janeiro (Correio da Manhã, Última Hora e O Globo) e São Paulo, onde vive desde 1972. Na capital paulista, foi chefe da Redação da sucursal de O Globo, onde ficou quase dez anos, chegou a montar uma empresa de comunicação especializada em publicações empresariais, foi crítico de cinema do Jornal da Tarde e depois da revista VIP, e chefe de Reportagem de Política e repórter do Estadão. Passou também pela assessoria do Governo do Estado de SP, dirigiu o Diário do Comércio e foi editor de Suplementos e dos cadernos especiais no Diário de S.Paulo, de onde saiu em 2007. A rainha, Pelé, Havelange e o coro no Maracanã Novembro de 1968. Tempos bicudos. A traulitada que pertence aos registros históricos como AI-5 estava em gestação desde setembro, por causa de discurso do deputado e ex-colega de redação Márcio Moreira Alves conclamando as mulheres e namoradas de militares a greve de sexo ao longo das comemorações da Semana da Pátria. Mas o clima de tensão nos bastidores da política entrou em ameno recesso, antes do compulsivo recesso do Congresso, após a chegada ao Rio de Janeiro do imponente iate inglês Britânia. A bordo, Sua Majestade a Rainha Elizabeth II e seu consorte Phillip, em visita oficial a começar em Brasília com recepção no Itamarati e se encerrar, numa tarde de domingo, com partida de futebol no Maracanã, entre seleções carioca e paulista, especialmente convocadas para a ocasião. E tudo foi uma festa, com situações emocionantes e outras absolutamente hilárias. No primeiro ato, o marechal-presidente indireto Costa e Silva acomodou sem muita elegância a faixa presidencial em austero fraque, deselegante barriga e seu jeito muito peculiar de caminhar. No discurso de saudação, citou a “feliz coincidência” de que Sua Majestade e a cidade de Brasília aniversariam no mesmo 21 de abril. Alguém, no meio do salão, bateu palmas e tentou iniciar o clássico “parabéns pra você” sob severos olhares de estupor da diplomacia nacional. Mais tarde cochichou-se ao pé do ouvido que, na apresentação oficial, a primeira dama Yolanda Costa e Silva verteu para o inglês o termo popular feminino para os galãs da época – o “gato” de hoje – e saudou o príncipe Phillip com frase lapidar: ”You are a bread”. Nós, mortais repórteres, mantidos à distância no imponente salão, nunca soubemos qual a resposta ou reação de Sua Alteza. Mas deu para notar discretos olhares para o teto, conjugados a esfregar de mãos de aflitos diplomatas. De volta ao Rio, após passar por São Paulo (a edição local ficou com a cobertura), Sua Majestade enfrentou com elegância a inevitável apresentação de passistas de escola de samba, passeou de Rolls Royce por ruas e avenidas salpicadas de marcas de asfalto recente, onde até dias antes havia buracos de diferentes formas e tamanhos. Na orla de Copacabana recebeu palmas e gritos de populares de diferentes idades, muitos em informais trajes de praia. Nunca se soube se observou, em Ipanema, tarjas escuras colocadas sobre o final das placas da rua Rainha Elizabeth da Bélgica, uma homenagem ao casal real belga em visita ao Brasil nos anos de 1920. Porta-vozes do governo do então Estado da Guanabara e do Itamarati negaram com veemência qualquer responsabilidade em eventual tentativa de enganar a soberana visitante por meio da insinuação de homenagem (falsa) numa das ruas do trajeto. A tarja escura havia sido efetivamente colocada nas placas. Eu vi e constatei, no dia seguinte, que tinham sido retiradas. Após outras gafes – durante visita às obras da ponte Rio-Niteroi, financiada com capitais ingleses, o ministro dos Transportes, coronel Mário Andreazza, convidou a rainha a retornar ao Brasil para inaugurar a obra, demonstrando desconhecer o cerimonial real inglês que determina uma única visita a países não integrantes da comunidade britânica –, Sua Majestade enfrentou com a mesma elegância o cancelamento, por causa do tempo nublado, da também inevitavelmente programada visita ao Corcovado. E então, afortunadamente numa tarde de sol, fomos todos ao Maracanã. Segundo as informações oficiais, mais de 120 mil pessoas compraram ingresso para ver o aguardado, pois bem divulgado, “Jogo da Rainha”, com a assegurada presença de Pelé na seleção paulista. Ou seja, “o Rei no Jogo da Rainha”. Certa sombra de preocupação baixou no cenário impressionante e no clima de alegria do imenso estádio lotado: a informação de que “as autoridades de segurança” haviam proibido o anúncio pelos autofalantes da chegada da rainha e do príncipe por terem descoberto conspiração de vaia articulada por “elementos subversivos“, mas não tiveram tempo de a desarticular. E foi sob o alegre barulho da multidão que a rainha e o príncipe ocuparam discretamente a Tribuna de Honra do estádio, acompanhados por ministros, governador e, entre outros, o então presidente da CBD (atual CBF) João Havelange. Ao colunista social e cronista de esportes Jacinto de Thormes, meu colega na redação da Última Hora, convidado pelo Itamarati a pedido da embaixada da Inglaterra, coube a missão de explicar ao casal real os detalhes do jogo. Minutos depois a multidão nas arquibancadas percebeu a presença da rainha e, de forma espontânea e alegre, de pé, passou a aplaudir. Em segundos o Maracanã era inteiro um coro emocionante: “Rainha, rainha!”. Sua Majestade, de pé, acenou em agradecimento até a entrada das seleções, que tinham Rivelino, Adhemir da Guia e Clodoaldo entre as estrelas paulistas ao lado de Pelé. E Gerson, Felix, Brito e Jarizinho, do lado carioca. E o jogo estava 2×2 no segundo tempo quando o juiz Armando Marques marcou pênalti contra os cariocas. O Maracanã entoou então seu já clássico coro: “Bicha, bicha!”. Do “cercadinho da imprensa”, deu para notar a curiosidade do casal real e as explicações de Jacinto de Thormes. No dia seguinte ele contou na redação que a rainha não reagiu à explicação e o príncipe gargalhou. A uns 15 minutos do final foi anunciado pelos autofalantes que Pelé e Gerson seriam substituídos pois deveriam se apresentar na Tribuna de Honra: a rainha entregaria taça ao vencedor e medalha ao perdedor. Começou então o tradicional empurra-empurra entre fotógrafos, seguidos de gritos após a chegada dos suados jogadores, de João Havelange carregando a imensa taça e vários políticos, entre os quais o chanceler Magalhães Pinto. – Rainha, dona rainha! Por favor, olha pra cá! – gritava uma das alas de fotógrafos, em meio aos cliques característicos. – Pelé, Pelé! Fica do lado da rainha! – gritava outro grupo, nervoso. – Sai da frente, ô de gravata! Sai da frente, “seu” Pinto! – berrava a ala que herdou o pior ângulo. Nas arquibancadas, a multidão acompanhava a gritaria dos fotógrafos em relativo silêncio. Diplomatas e Jacinto pediam calma, inutilmente, sob olhares raivosos dos engravatados. A rainha passou a conversar com Pelé, ao lado de intérprete do Itamarati, com Gerson um pouco atrás. Os fotógrafos, então, se uniram num só coro: – Havelange, entrega a taça pra rainha, entrega a taça pra rainha! O alto e atlético presidente da então CBD estendeu a bonita taça prateada para Sua Majestade, que demonstrou o peso da peça, pois deu um passo para trás, quase cambaleando. – Rainha, dona rainha! Entrega a taça pra Pelé! – ecoou o grito dos fotógrafos, sempre em meio aos cliques característicos. E quando Pelé estendeu as mãos para receber o troféu, o fez sob novo e mais forte coro dos fotógrafos: – Havelange, Havelange! Tira “seu” Pinto da frente! “Seu” Pinto não apareceu nas fotos de primeira página dos vespertinos do dia seguinte e dos matutinos da terça-feira. Todas exibiram, de diferentes ângulos, a rainha, Pelé e a taça prateada, confeccionada em Lisboa, segundo Havelange, especialmente para a ocasião.

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