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terça-feira, abril 16, 2024

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Memórias da Redação ? Avante, paulistas!

Em mais uma divertida história, Plinio Vicente da Silva ([email protected]) conta a luta etílica de quatro paulistas pela defesa da honra de seu estado nos bares de Boa Vista.   Avante, paulistas! Era setembro de 1985 e fazia pouco mais de um ano que eu deixara a redação do Estadão para ser correspondente do Grupo Estado em Boa Vista, capital do então Território Federal de Roraima. Ainda meio deslocado numa terra estranha, sentia falta dos meus amigos e das coisas próprias do interior paulista, onde nasci e me criei. Jogar truco era umas delas. Foi com esse estado de ânimo que liguei no único canal de televisão disponível naqueles tempos para ver o noticiário da terra. Logo de cara veio a entrevista com uma figura morena, até que bonitona, acaboclada, um tanto quanto rechonchuda, cabelos negros e lisos mostrando sua origem indígena. A declaração da moça na tevê local veio bater-me bem no baixo-ventre. A mim me pareceu um pontapé sem endereço, mas por estar na rota de colisão acabei vitimado. Como, aliás, devem ter sido atingidos os 80% dos habitantes de Boa Vista, que formam até hoje uma espécie de “contingente estrangeiro” neste pequeno “país” tropical que o Brasil desconhece. A coisa deu-se da seguinte maneira: a entrevistada se apresentou como pintora da terra e a repórter perguntou-lhe se ainda incluía em seus trabalhos temas regionais com as características próprias da região do extremo norte. A senhora, que até tem entre seus trabalhos alguns que considero interessantes, respondeu que sim, pois preocupava-se em preservar os valores tradicionais de Roraima, que, segundo ela, “estão sendo destruídos pelos aventureiros que para cá fugiram”. Foi então que gritei para mim mesmo: – Paulistas, uni-vos e preparai-vos! Essa gringa pisou no meu calo e em nome de São Paulo vou declarar guerra à República Macuxi. Saí disposto para a primeira batalha e sem perda de tempo tratei de localizar três membros do nosso pequeno exército de caipiras. Tá certo que ele era menor do que o de Brancaleone, mas assim como eu todos os meus companheiros de “armas” haviam sido apanhados pelo cocô da pintora: Renato, de Bauru, dono de um posto de gasolina (já falecido); Valdeir, de Jales, gerente de uma agência bancária, hoje andando por não sei onde, e Adão, paulistano do Limão, executivo de uma empresa de engenharia e construção, hoje empresário bem-sucedido por aqui. Fiz-lhes uma proposta, a de buscar vingança com as melhores armas de que dispúnhamos. Todos toparam. Então discutimos o assunto e definimos a estratégia, claramente dispostos ao revide. Afinal, não éramos aventureiros, não estávamos aqui foragidos e fazíamos de tudo para ajudar a preservar as tradições locais, inclusive melhorando algumas coisas. Tarefa que cabia principalmente aos “estrangeiros” solteiros, que não era meu caso, pretendentes caçados não apenas pelas moçoilas, mas principalmente pelos pais com filhas em idade de casar. Em todo caso, as alcovas que o digam, pois durante décadas muita gente tem recebido um bom banho de civilização. Sexta-feira, noite de bandalha. Encomendamos o frango com polenta, reunimos nossas armas e lá fomos nós para o campo de batalha.  Entramos no Cosa Nostra falando um caipirês genuíno, com todos os erres do idioma muito bem falado pelo povo de Piracicaba. O local era estratégico, pois o restaurante ficava bem ao lado, parede-meia com a casa da detratora. De início, entre uma caipirinha e outra, parecíamos um bando de matutos discutindo o preço da égua. Todavia estávamos mesmo era à espera da fulana, que só chegou por volta das nove da noite. Assim que ouvimos o barulho da porta rangendo ao se abrir consideramos o momento propício para dar a largada ao nosso plano maquiavélico, embora a cachaça já desse claros sinais de seus efeitos, refletidos nas vozes meio empasteladas de nós quatro. Então, percebendo que poderíamos perder rapidamente o que ainda nos restava de dignidade e domínio da consciência, suspendemos a próxima dose e começamos a nos preparar. Entretanto, ainda era cedo para os propósitos definidos, o principal deles tomar como butim a paz da referida senhora. O tempo passou enquanto traçávamos o frango com polenta entre goles de cerveja. Ao final do repasto chegou então o momento de colocarmos em prática o que fora planejado. Quando saímos do banheiro, agora devidamente uniformizados, percebendo que alguma caca estava a caminho o pessoal no restaurante parara tudo para ver em cena quatro guerreiros: eu com a camisa do Palmeiras; Renato vestindo o vermelho do Noroeste; Valdeir com uma impecável jaqueta 9 da Jalense e Adão exibindo orgulhoso a de no. 7 do Parque da Moóca, que, segundo ele, defendeu como um sofrível ponta direita em jogos do Desafio ao Galo da TV Record. Nos pusemos os quatro de olho na janela do quarto que dava para a rua. Assim que a rapariga apagou a luz logo acima de nós, no andar superior, Adão tirou da capanga um Copag zero quilômetro. Com dedos de punguista desembaralhou, limpou as cartas podres – o combinado foi de a gente jogar mania velha – e botou na mesa. O gesto veio automaticamente: os quatro cruzaram as mãos sobre o baralho tal como mosqueteiros amazônicos. Com Renato de parceiro, eu fui contrapé na primeira mão, portanto era a minha vez de cortar. Cartas distribuídas, começou o jogo. Primeira vai, segunda vem e na terceira mão um grito de guerra ecoou forte no meio da longa noite de vingança: – Truuuuucoooooo! E assim a cena foi se repetindo outras vezes e mais outras tantas, rompendo o silêncio profundo que reinava até então na pacata e provinciana Boa Vista dos anos 1980. Madrugada a dentro a moça entregou os pontos. Vestindo um peignoir com estampas de raminhos, desceu, encarou os quatro e destemperou toda a sua ira. Ah!, mas era isso que a gente queria. E então ela levou, em uníssono, o troco dos mais barulhentos truqueiros que o Norte do Brasil já conheceu. Foi então que, ao ouvir de quatro “estrangeiros” cambaleantes uma eloquente exposição de motivos, percebeu a mancada que dera na entrevista à moça da tevê. E não teve outra saída senão pedir desculpas humildemente. Obviamente aceitas de imediato, pois vimos que a presa estava abatida e não havia mais motivo para seguir com a vingança. Honra refeita, alma lavada, satisfeitos e embriagados (em ambos os sentidos) pela vitória, levantamos acampamento. No caminho de volta bateu a alcoólica certeza: se a pintora tivesse resistido mais um pouco, teria amanhecido com três paulistas e um paulistano desmaiado sob a sua janela… 

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