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sexta-feira, março 29, 2024

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Memórias da Redação – O sorriso da discórdia

No terceiro de quatro textos sobre Matías Molina, extraídos do livro Matías M. ? O ofício da informação, Nora Gonzalez traz a relação entre o exigente editor-chefe e o trabalho dos famosos desenhos em bico de pena da Gazeta Mercantil. Ex-editor-chefe da GZM, Molina completou 75 anos no final de julho e, para homenageá-lo, seu filho caçula e também jornalista Maurício Martínez fez as vezes de editor e convidou no ano passado 28 profissionais que conviveram com o pai em algum momento de sua vida a escrever um capítulo sobre como era o chefe. Nora ([email protected]), PR Manager Latin America da Fico, está entre esses autores. Ela fez algumas contextualizações para a republicação. Os títulos são de J&Cia. O sorriso da discórdia Trabalhar na Gazeta Mercantil, nas suas boas épocas, entre os anos 1980 e 1990, era sempre muito emocionante. A constante cobrança do editor chefe Matías Molina era ao mesmo tempo a melhor e a pior parte. A melhor, porque se aprendia muito. A pior, porque havia que aguentar um monte de perguntas e responder aquilo que achávamos que ninguém questionaria. Precisão e atenção aos mínimos detalhes eram uma verdadeira obsessão dele. Quando se trabalhava na edição, como era o meu caso, pior ainda. E não adiantava argumentar que havia coisas que não estavam no nosso controle. Bico de pena, aquele artístico precursor da fotografia, era um desses casos. Ao diagramar uma matéria, pedíamos o bico de pena do entrevistado, mas ele não subia para a redação, ia direto para a composição, sem que o editor o visse. Enquanto Ozires Silva foi presidente da Embraer, tudo ótimo. Tínhamos um bico de pena dele muito bom, feito pela Conceição Cahu, perfeito, com um ligeiro sorriso, discreto, a cara do Ozires. Mas eis que um dia ele foi convidado para ser ministro de Minas e Energia. Eram épocas de inflação à solta. Mês sim, mês também, os combustíveis subiam uma barbaridade, coisa de 20 ou 30% de cada vez. No primeiro mês, pedi o bico do ministro. No dia seguinte, lá estava minha página de Energia escancarada na mesa do Molina e o retratinho circundado por uma implacável caneta vermelha. ?Nora, como é que pode? Aumento de 25% nos combustíveis e o ministro sorrindo? Isso é um absurdo. Troque já esse bico de pena?, ouvi com aquele sotaque inconfundível.  Sai da sala e pedi que a Arte fizesse um novo bico de pena e expliquei meus argumentos. Bem, como todos estávamos sempre supercarregados, meu pedido caiu naquele buraco negro que surgia com frequência entre os andares do prédio da Major Quedinho. Mas eu não sabia disso. Dai a 15 ou 20 dias, novo aumento, da mesma magnitude. Novamente pedi o bico de pena, fechei a página e ingenuamente fui para casa achando que entraria o novo bico, mais sério. Ledo engano. Ninguém havia feito um novo. No dia seguinte, novo puxão de orelhas. E eu era louca de dizer que isso não passava por mim? De jeito nenhum. Encarei valentemente a bronca e decidi que não haveria uma terceira vez. Pedi a pasta com as fotos e os bicos de pena do Ozires Silva. Sim, era em papel, mesmo. Bons tempos em que não havia protocolos nem coisas ao alcance de um clique. Era tudo na base da confiança. Discretamente, tirei da pasta o único bico de pena com aquele sorriso que já me dava nos nervos e todas as fotos em que o simpático Ozires esboçava uma cara cordial. Fui ao banheiro e picotei tudo bem, bem pequeninho. Devolvi a pasta para o Centro de Informações e dois dias depois, pedi o bico de pena do ministro, que, misteriosamente, não estava mais dentro da pasta. Mas como pode acontecer isso? Preciso dele para hoje! Vão anunciar aumento de combustíveis! Rapidamente, o pessoal fez outro bico de pena. Levei uns cinco anos para contar isso para o Molina e a própria Cahu, o que na época rendeu boas risadas.

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