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terça-feira, abril 23, 2024

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A noite em que chamei Fidel para comer feijoada

A noite em que chamei Fidel para comer feijoada Aconteceu em janeiro de 1989, quando Fidel Castro ainda era um jovem sexagenário, e eu estava fazendo minha primeira viagem internacional como assessor de imprensa do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que disputaria naquele ano sua primeira eleição presidencial. Viajamos com uma comitiva do PT para cinco países da América Central e do Sul, começando por Cuba. É melhor contar essa história como foi desde o começo e, para dar conta desta tarefa, sem correr os riscos dos achaques da memória, no dia em que o eterno líder revolucionário cubano completa 90 anos, recorro mais uma vez ao meu livro Do golpe ao Planalto – Uma vida de repórter (Companhia das Letras, 2006). *** No avião, combinamos perguntar ao Comandante – como todos se referiam a Fidel – o que achava do manifesto assinado poucas semanas antes por uma centena de intelectuais europeus pedindo um plebiscito em Cuba, a exemplo do programado no Chile do general Augusto Pinochet. Logo na nossa primeira noite em Havana, já era quase meia-noite quando Fidel surgiu de surpresa na Casa de Protocolo, onde hospedava seus visitantes ilustres, para ter a conversa inicial com Lula e a delegação brasileira. Entre uma baforada e outra no charuto e goladas nos mojitos – uma caipirinha cubana, feita com rum e hortelã – servidos sem que se precisasse pedir, só ele falava, sempre em tom de discurso. Como nas noites seguintes, em que também vinha sem avisar, o Comandante defendeu uma nova ordem econômica internacional, dizendo que “os países do Terceiro Mundo estão saturados da dívida gerada por mecanismos de intercâmbio desigual”, e contou da luta de Cuba para baixar os índices de mortalidade infantil e dos planos do governo para desenvolver o turismo. Tudo muito bom, muito bonito, mas ninguém se arriscava a fazer a pergunta combinada: e o que ele achava da ideia do plebiscito? Ainda com cabeça mais de repórter do que de assessor, ousei interromper o líder cubano para ouvir sua opinião sobre o assunto, já que todos os dias enviava a São Paulo matérias sobre a nossa viagem, as quais Sergio Canova, a outra metade da nossa “equipe de imprensa”, e um tremendo pé-de-boi, retransmitia aos jornais. Fidel levantou-se da cadeira de balanço e pareceu ficar ainda maior do que é. De dedo em riste, veio para cima de mim e, em vez de responder à minha pergunta, metralhou-me com várias outras: “Que plebiscito? Que intelectuais? Aqui em Cuba todos têm armas, não precisamos fazer plebiscito. Se quiserem mudar o governo, é muito fácil, é só pegar em armas. E que intelectuais são esses? Um bando de pederastas que não têm o que fazer!”. Aprendi a lição: assessor não ganha para fazer perguntas durante os encontros do candidato com autoridades de outros países. Basta anotar o que eles dizem. Na noite seguinte, o Comandante chegou bem na hora em que saíamos para comer a feijoada que nosso embaixador, Ítalo Zappa, tinha nos oferecido. Como ninguém se manifestou, o tempo foi passando, Fidel continuou a falar e, novamente, arrisquei minha pele, lembrando que o embaixador nos esperava para o jantar havia horas. – O embaixador pode esperar um pouco – respondeu-me nosso anfitrião. – Por que então não vamos todos juntos para a embaixada brasileira comer a feijoada? – arrisquei-me de novo, mas dessa vez deu certo. – Boa ideia. Gosto muito de feijoada. Vamos todos, então – concordou Fidel. Não seria tão simples assim. Os deslocamentos de Fidel, depois de tantas ameaças de atentados contra ele, são previamente checados por um portentoso esquema de segurança. Nosso embaixador ainda se refazia do susto com a inesperada visita que precedera a chegada do Comandante acompanhando a comitiva de Lula, quando propus a Marisa que fossemos comer na cozinha. Eu não aguentava mais ouvir as mesmas histórias: dos primeiros passos dos revolucionários até a derrubada de Fulgencio Batista, além de todas as conquistas do povo cubano, contadas em minúcias, como se tivessem acontecido na véspera. Dali a pouco, fomos descobertos no nosso refúgio. Por quem? Pelo próprio Fidel, que tinha ido conhecer a casa da embaixada. “Ah, dona Marisa, comendo na cozinha, hein? Este é sempre o melhor lugar da casa!”, comentou, encostando-se na lateral da geladeira, de onde não mais se afastaria nas horas seguintes. Cercados de gente por todo lado, Marisa e eu não podíamos nos levantar nem para ir ao banheiro, senão perderíamos o lugar.

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